
MANZO: OUTRA NOÇÃO DE FAMÍLIA
- carolteixeirasil
- 7 de fev.
- 16 min de leitura

O texto de hoje é diferente do que tenho feito por aqui. Trata-se de uma pesquisa e trabalho de campo feito em 2017, quando ainda estava na graduação em filosofia e flertava fortemente com a antropologia. Fiz uma disciplina de Saberes Tradicionais da UFMG, chamada Línguas e Narrativas: Pensamento e Ação Comunicacional nas Comunidades Tradicionais. Nesta disciplina conheci e comecei a frequentar o Manzo, quilombo urbano da zona leste de BH. No mesmo semestre peguei como optativa, uma disciplina do departamento de história, chamada: A Diáspora Africana no Novo Mundo, com o professor Alexandre Marcussi. Este texto foi o trabalho final destas duas disciplinas, originalmente foi escrito com uma linguagem acadêmica e hoje eu o reescrevo na tentativa de adotar um tom mais literário e informal.
Mas de lá pra cá muita coisa aconteceu e muita coisa mudou, morei em outras regiões do país e voltei a morar em Belo Horizonte no final de 2021, em 2022 me mudei para zona leste da cidade e coincidentemente ou não, me tornei vizinha do quilombo Manzo, sendo também o terreiro em que vou tomar passe sempre que possível. Então pensei, já que o blog é uma forma de dar vazão ao meu desejo de ser escritora, também quero postar aqui o que está além da psicanálise e psicopedagogia. E no fim das contas, família não deixa de ser um tema de grande importância e impacto para a saúde mental. Então vamos ao que interessa.
A história da fundação do Manzo, de sua luta com a Prefeitura de Belo Horizonte, bem como, com todo o Poder Público está bem documentado na Tese Bandeira Branca em Pau Forte: A Senzala de Pai Benedito e o Quilomblé Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango, de Carlos Eduardo Marques, Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e filho de Santo da Mãe Efigênia¹. Trata-se de uma luta pelo reconhecimento da comunidade enquanto Comunidade Tradicional Quilombola Urbana, mas antes de mais nada, é uma luta pelo direito de existir com dignidade, que infelizmente é uma luta comum e necessária a todos os povos tradicionais que resistem até os dias de hoje. Como a tese do Carlos documenta bem a história e a luta do Manzo, para permanecer resistindo em seu território, aqui vou contar essa história de forma mais superficial, também por uma questão de tempo.
O Manzo foi fundado pela Mãe Efigênia [Efigênia Maria da Conceição] na década de 1970, inicialmente o Manzo se chamava, Senzala de Pai Benedito. As relações da família/comunidade se fundam e engendram nas religiões afro-brasileiras, tendo começado na Umbanda e aderido ao Candomblé da nação Angola posteriormente. Mesmo com a adesão ao candomblé, as entidades da umbanda continuam sendo cultuadas, pois como vamos ver adiante, são entidades centrais na vida de cada membro dessa grande família.

Uma característica das religiões africanas perpetuada nas religiões afro-brasileiras é seu caráter assimilacionista, poderíamos usar o termo sincretismo, mas sincretismo pode ser um termo controverso já que muitos acadêmicos da antropologia o utilizam para falar de uma destruição cultural feita a partir do sincretismo. O interesse aqui é expor o caráter assimilacionista das religiões de matriz africana e especificamente do quilombo Manzo, onde a cultura se transforma nessa assimilação para continuar existindo/resistindo e não para se destruir ou ser destruída. Por isso, apesar da estranheza, vamos usar a assimilação/assimilacionismo/assimilacionista e não sincretismo.
O caráter assimilacionista das religiões de matriz africana é justamente a capacidade de incorporar em seu interior aspectos de outras religiões, sem que isso gere qualquer tipo de contradição dogmática. No Manzo essa capacidade assimilacionista fica tão evidente que o Carlos Marques, em sua Tese chama os moradores do quilombo de quilomblecistas, uma vez que, a relação e identidade quilombola sempre estiveram acompanhadas e impregnadas de religião, sendo esta o candomblé angola com assimilação da umbanda. O próprio terreno de Manzo foi conquistado e escolhido por Pai Benedito, Preto Velho de Mãe Efigênia, sempre cultuado e respeitado na comunidade.
Pai Benedito é considerado o verdadeiro pai de todos os filhos biológicos da Mãe Efigênia, porque Mametu Muiandê ² esteve incorporada pelo Pai Benedito na maior parte da infância e adolescência de seus filhos. Makota Kidoiale Cássia falou sobre a experiência de ser criada por Pai Benedito e Gituagi de Kavungo Rosemary reafirmou em depoimento gravado:
Sou alucinada com Pai Benedito, sou alucinada com Preto Velho, sou alucinada com tudo que vêm da Mãe Efigênia, do Kizomba e de mim também, do meu Pai que vira em mim, que é Kavungo, eu sou de Kavungo. Eu tenho o maior prazer! [...] Pai Benedito é uma paixão, você conhece ele? Ele não deixa a gente ficar com raiva de ninguém. Se a gente está com dor ou com doença ele manifesta na Mãe, ele benze. Ele chama a atenção também. Tive umas desavenças com ele, mas já pedi desculpa, foi na hora do meu sofrimento, acho que ele entendeu. Acho que ele me perdoou. Teve a festa dele, eu cozinhei para ele de nove da manhã a nove da noite, por isso estou com essa gripe toda. Ele me abraçou, me beijou, falou que eu estou de parabéns. Todos que vêm aqui procuram o Pai Benedito. Ele é um pai para a gente, por isso que se chama, Pai Benedito. [...] E a gente respeita muito ele. Ele é um senhor de muito respeito, e ajuda muito a gente. Se tem uma criança doente ele benze. Ele deixa você de penitência, mistura as comidas secas e põe você de joelho para você entender que a vida não é assim. E isso aqui [Manzo] é dele.
Fica evidente no depoimento a multiplicidade dessa relação. Pai Benedito é extremamente respeitado ao mesmo tempo em que participa do cotidiano de Manzo. Resolve problemas, castiga, ajuda, benze, cura e está sempre atraindo pessoas para o quilombo. Pai Benedito é um guia espiritual desempenhando o papel de pai biológico, dentro de uma comunidade marginalizada pelo Poder Público e que precisa buscar dentro de si a força de resistência diária. O Manzo se vale e valida pelos seus, se cura com o benzimento de Pai Benedito antes de recorrer a um hospital.
Não poderia ser diferente pois estamos falando de um quilombo urbano com um longo histórico de violências sofridas pelo poder público, como dito acima, as instituições públicas que deveriam ajudar o quilombo a conquistar dignidade e legitimar sua existência, não só não ajuda como sempre que possível, destrói o que com duras penas esta família conquista. Desde a escola do bairro até a Prefeitura de Belo Horizonte, os quilombolas foram desumanizados e desrespeitados pelo simples fato de existirem e resistirem em um mundo que os condena.
A pior das violências sofridas foi a retirada de todas as famílias do quilombo para uma reforma emergencial nas construções que, segundo a prefeitura de Belo Horizonte, estariam prestes a desabar. Durante a reforma, as famílias ficariam em um abrigo da prefeitura por no máximo 90 dias, todavia, em mais uma demonstração de descaso e desrespeito da Prefeitura de Belo Horizonte com o Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango; esse prazo se estendeu por 330 dias [11 meses]. Quando os quilombolas conseguiram retornar às suas casas, na zona leste da cidade, bairro Santa Efigênia, nenhuma reforma havia sido feita, a única ação da prefeitura consistiu em uma descaracterização do quilombo, foram destruídos os quartos de Santo e a cozinha do Terreiro, essa foi a reforma que levou 11 meses para ser finalizada.
Mãe Efigênia não pôde continuar no quilombo, não apenas pelo sofrimento de ver seu trabalho jogado ao chão, pois estamos falando de uma matriarca fundadora de um Quilombo Urbano, mãe de seis filhos e Mãe de Santo da Umbanda e do Candomblé Angola, estamos falando de uma mulher que não se abala nem desanima facilmente, no entanto, o trauma de ser retirada de sua casa, com todos os seus filhos de santo e de sangue sendo forçados a viver em um abrigo por três meses que viraram onze, traz memórias que ainda doem nessa matriarca. Suas lágrimas caem, mas a voz que deveria estar embargada é fortalecida, fazendo ecoar toda a luta de resistência do Manzo, e atraindo adeptos à sua causa.

A saída de Mãe Efigênia se deve ao trato firmado com seu Preto Velho, dono do terreno. No trato a Mãe poderia morar no terreno enquanto lá funcionasse um Terreiro onde o espaço de Pai Benedito fosse respeitado. Com a destruição do Terreiro, a comunidade passou por uma forte crise identitária. Mãe Efigênia mudou-se para um terreno escolhido por seu Caboclo, em Santa Luzia, que se tornou seu lar permanente. O Candomblé foi transferido para Santa Luzia, mas Pai Benedito continuou tendo seu espaço em Santa Efigênia. Para resolver e atender as famílias do quilombo, a Mãe retorna ao bairro toda segunda-feira e lá passa o dia. Reestabelecida internamente, a comunidade continuou enfrentando os problemas externos. Como agravante a divisão territorial entre dois municípios [Belo Horizonte e Santa Luzia] que impossibilitou o reconhecimento jurídico de um mesmo Quilombo. Implicando num duplo trabalho para as lideranças do Manzo e dificultando o reconhecimento das diversas famílias (Família Kizomba, Família Manzo e Família de Santo), pertencentes a uma mesma e grande Família.
Voltando à fala de Gituagi Rosemary, a primeira divergência da noção de família "tradicional", da sociedade brasileira em relação à noção de família estabelecida no Manzo, é a relação com os ancestrais, íntima ao ponto de se ter desavenças e fazer as pazes com um ancestral longínquo como um Preto Velho, longínquo e ao mesmo tempo presente no dia-a-dia. Pai Benedito é um pai não apenas dentro das práticas religiosas, mas atua como ponto de apoio para a comunidade. Estando presente na educação dos filhos biológicos, de criação e de santo, assim como com os demais frequentadores do quilombo que não são necessariamente filhos de santo. Alexandre Marcussi, em sua tese chama a atenção para o fato de a ancestralidade ser uma dimensão importante para os africanos em todos os territórios do império português. Tal importância é ainda hoje encontrada em Manzo e demais comunidades tradicionais quilombolas (o culto aos ancestrais no Brasil, não se restringe às comunidades quilombolas ou às religiões afro-brasileiras). A importância da ancestralidade e consequente culto aos ancestrais atua como um primeiro amarrador de outra noção familiar. Pai Benedito foi a porta de entrada para a maioria dos frequentadores do Manzo assim como para os filhos de criação da Mãe Efigênia; a porta de entrada para a religiosidade afro-brasileira e o ponto de partida para a construção de uma identidade compartilhada entre os quilombolas, todos são filhos de Pai Benedito. A religiosidade afro-brasileira, tal como no período colonial, assume a função de dar identidade aos indivíduos aparentemente isolados, destituídos de suas famílias e carentes de um Estado que lhes proporcione qualquer tipo de pertencimento ao mundo.

Nas condições de aparente isolamento, destituição familiar e não pertencimento ao mundo, Gituagi de Kavungo Rosemary chega ao Manzo, aos 15 anos de idade, Gituagi como prefere ser chamada, já se encontrava desprovida de um lugar reconhecidamente seu. Situação frequente ainda hoje para muitas crianças e adolescentes de baixa renda, em sua maioria, negros. Deixando evidente como a noção tradicional de Família é na realidade uma noção cristã e burguesa, bem aplicável às classes dominantes e a contextos específicos como os do interior mineiro, onde apesar da pobreza impera a lógica cristã de família e os casamentos são mantidos, muitas vezes, a duras penas. Porém, em qualquer contexto brasileiro, é negado à mulher pobre (majoritariamente Negra) as condições de constituir uma família em tais termos. Gituagi foi casada com o filho biológico e de Santo da Mãe Efigênia, Renato, por 18 anos. Com o fim do casamento, Renato deixou de viver no quilombo, embora continue ocupando seu cargo no Candomblé (em Santa Luzia), enquanto Gituagi, completa 30 anos no quilombo. Lembrando que este trabalho foi feito em 2017, hoje em 2025, Gituagi completa 38 anos no quilombo.
Vivi com ele [Renato] 18 anos, com muito sofrimento. Hoje todo mundo pergunta: Por que você vive em Manzo e ele não? Isso foi uma escolha, não sei se dos Orixás, da minha Mãe Efigênia, porque ela é assim, ela é a favor das mulheres e contra os homens que fazem sacanagem. Portanto ela fala, “Você parece a minha filha carnal.”. Mas não sou, sou filha de Santo. Estou aqui no Manzo, hoje eu tenho 46 anos de idade, há 30 anos estou em Manzo. Então para mim, minha família é aqui. [...] A minha vida é isso aí, é o Kizomba mesmo. Eu falo com a Mãe Cássia que todo ano eu estou saindo. Ela fala, “Todo ano você tá saindo, mas você tá sempre aqui com a gente”. A gente mora de parede e meia, meus sobrinhos me adoram. Se eu estou doente eles me dão o maior apoio. A minha família eu construí aqui. Eu tenho irmãos [biológicos], mas não sou ligada a nenhum deles. Porque quando eu vim para cá, antes da minha mãe falecer, meu irmão esteve aqui e falou, “Dona Efigênia, a senhora vai assumir a responsabilidade da Rosemary? Então nós vamos entregar ela para a senhora”. Nunca mais ninguém me procurou. Só procurou quando a minha mãe faleceu, fui no velório, dei a minha presença, mas não fui no enterro. A minha família na dor, na doença e na fome é essa aqui [Manzo]. Então eu brigo por ela, não gosto nem que falem, deixa que eu falo da Efigênia, eu posso achar mil defeitos, mas você vim falar dela eu nunca aceito. A minha vida é isso aqui, é esse pedacinho de chão aqui. Essa casa humilde que eu tenho, que ela me deu, ela fala, “Você pode ir, mas é a casa das minhas netas”. Toda vez que eu falo que eu quero ir embora, ela fala, “Calma minha filha, vamos lá no Santo. Vamos ver o que que o Santo quer”. Vai me enrolando, me embromando [risos] e eu estou indo com Manzo, firme e forte.
Para começar a analisar a fala da Gituagi, vamos discorrer brevemente sobre a noção de cultura introduzida por Franz Boas, nos limitando a uma curta seleção de autores, dentre os quais, nenhum será analisado com devida profundidade, mas suas ideias nos servirão para interpretar superficialmente as complexidades relacionais do Manzo. Em outras palavras, daqui em diante o academiquês não é muito contornável.
Franz Boas introduz uma noção de cultura posteriormente trabalhada por Sidney Mintz e Richard Price, na qual, fenômenos culturais precisam ser analisados por duas vertentes, sendo a primeira, a forma; e a segunda, as qualidades imanentes. Trata-se respectivamente, do que é aparente; e do que dá significado aos fenômenos culturais, porquanto, é preciso entender a cultura em que o objeto, ato ou ação foi produzido para ser capaz de compreender seu significado.
Boas defende que cada cultura possui um espírito diferente, somente a partir da compreensão da totalidade de uma cultura, ou seja, da compreensão de seu espírito, podemos entender as formas particulares criadas em uma determinada cultura. Mintz e Price se baseiam nessa noção de cultura para criarem o que seus leitores vão chamar de perspectiva da crioulização, embora o conceito não tenha sido usado no ensaio dos autores, seu significado está presente. Na perspectiva da crioulização a cultura se transforma, se adaptando ao contexto que lhe é imposto a partir do contato e relação com outra cultura.
Partindo das ideias de Forma e Qualidades Imanentes, presentes em Boas, e na tentativa de encontrar um equilíbrio entre permanência e mudança cultural, a dupla formula os termos, Formas Socioculturais e Princípios Gramaticais. As formas socioculturais é o fator variável da transformação cultural, não é dito que os princípios gramaticais são fixos e imutáveis, porém, são menos passíveis de transformação por serem inconscientes, são, os valores, as orientações cognitivas, ou seja, são as maneiras pelas quais se acredita que o mundo funciona.
A título de ilustração, podemos imaginar uma cena hipotética no Manzo, na qual uma criança está sempre abatida, muito magra e pouco disposta; os quilombolas veriam nessa criança um mal olhado, inveja, ou “espinhela caída”. A mãe [biológica] da criança poderia pedir ajuda ao Pai Benedito, o qual além de benzer a criança costuma preparar banhos e chás com ervas sagradas. Mas supondo que, a avó paterna da criança seja católica; ela também verá na criança um mal olhado, inveja ou “espinhela caída”, mas sugerirá que se procure uma benzedeira católica, fará novenas, promessas e talvez até mande celebrar uma missa. Os modos (forma sociocultural) de cura variam, no entanto, mãe e vó veem no desanimo da criança um problema espiritual (princípio gramatical). O exemplo difere das situações analisadas pelos autores, ao contrapor religiões aparentemente opostas, por outro lado, evidencia também as transformações do catolicismo popular, onde rituais de cura muito parecidos e em grande parte, advindos das religiões afro-brasileiras tornam-se uma prática recorrente.
Por fim, Mintz e Price criam duas vertentes de argumentação, a Cultural e a Sociorrelacional. Tanto as formas socioculturais quanto os princípios gramaticais são questões culturais, já a vertente sociorrelacional é outra coisa, que requer o esclarecimento de outro conceito presente na teoria, o de Instituição enquanto qualquer relação social regular ou desordeira. A perspectiva sociorrelacional demanda transformação cultural, demanda a construção de novas instituições, as instituições (sociorrelacionais) limitam e determinam a bagagem cultural que vai permanecer. Não obstante, o sociorrelacional só faz sentido dentro de uma Gramática Cultural comum, assim como, falar em gramática cultural (forma sociocultural e princípio gramatical) só faz sentido dentro da perspectiva sociorrelacional.
Esta perspectiva sociorrelacional é ignorada por muitos autores que criticam Mintz e Price, e fundaram a escola habitualmente chamada afrocêntrica, dentre eles está John Thornton. Com os avanços tecnológicos, a escola afrocêntrica faz uso extensivo das fontes primárias e em oposição à crioulização busca na cultura uma continuidade. A continuidade cultural defendida vem em grande parte da teoria da concentração demográfica e étnica suscitadas pelos padrões do comércio de escravos. Todavia, há uma grande fragilidade empírica no modelo afrocêntrico, pois os dados que servem de base consideram a nação que constava nos nomes dos africanos, mas muitas vezes essas nações não designavam etnias, referiam-se apenas ao porto de onde o africano teria sido trazido.
Há ainda uma bibliografia referente aos africanos que mudam de nação para melhor se adaptarem ao contexto em que estão inseridos. Contudo é perceptível a convergência entre as correntes tidas como opostas, uma vez que, ambas possuem perspectivas culturalista, cada qual com suas singularidades. A perspectiva sociorrelacional da corrente de crioulização é uma divergência perfeitamente capaz de dialogar com a perspectiva culturalista de ambas as escolas. Este trabalho conciliatório é feito por Robert Slenes, em sua obra Na Senzala, uma flor, analisando a importância do fogo para os escravizados centro-africanos no Sudeste brasileiro no século XIX, Slenes reafirma as duas teorias, visto que, se tratavam de escravizados vindos de uma mesma região, consequência da rota marítima, com hábitos similares entre as nações. Em contrapartida, eles se constituíram enquanto comunidade através das instituições por eles criadas a partir de seus princípios gramaticais, delimitados pelo contexto. Todos possuíam grande comprometimento com culto a seus ancestrais, cada nação possuía uma forma de fazer isso; todos tinham com o fogo uma relação espiritual, já a função atribuída ao fogo em tais relações variava. O poder sagrado do fogo e o culto aos ancestrais foram convenientemente trazidos aos escravizados.
Ufa! Com essa breve introdução à discussão teórica em questão, podemos voltar para Manzo, repensando o conceito de comunidade. Para Mintz e Price a comunidade é dada não por fatores culturais, mas sim pelas instituições, se não há instituições não há comunidade. A primeira e maior instituição compartilhada por todos os africanos é a escravidão, logo, é a partir dessa experiência em comum que os escravos se organizam enquanto comunidade. Atentando para a Revolta dos Malês, é possível verificar que foi uma rebelião mobilizada prioritariamente por canais culturais (corrente afrocêntrica), pelas escolas corânicas, religiosas, pelas solidariedades formadas em torno do islamismo. Por outro lado, no eclodir da rebelião, diversas etnias aderiram, porque havia algo gerando reconhecimento de uma comunidade, a escravidão (sociorrelacional – crioulização).
As comparações feitas entre os quilombolas e os escravos são, antes de qualquer coisa, uma visibilidade da permanência de um modo de vida essencialmente forte, destacando que resistência diante das atrocidades humanas não implica paralisação cultural, nem se dá apenas por reações agressivas. É preciso evidenciar a desumanização de indivíduos que ao ouvirem em alto e bom som que não deveriam existir, fundam outra comunidade, outra família, outra forma de se enraizar e pertencer ao mundo e obriga os demais a reconhecerem sua existência.
Manzo me parece ser o resultado das transformações culturais analisadas pelos autores aqui citados, e muitos outros. Todavia as transformações não cessam nem têm fim. A comunidade quilombola está em constante transformação e adesão de indivíduos, tais como Gituagi, que de tão acolhida não vê como ir embora. O quilombo criou as instituições que lhe foram negadas e eram necessárias tanto na vida cotidiana como na lida com as políticas públicas da nossa sociedade desigual.
Para concluir proponho pensarmos o quilombo a partir de Hannah Arendt e Sílvia Lara. Manzo cultua e confere grande importância ao culto dos ancestrais, todavia, tais cultos conferem à comunidade uma consciência histórica e reconhecimento identitário não encontrado na noção tradicional de família ou na ideia moderna trabalhada por Hannah Arendt, de Estado Nação, onde o Estado assume papel familiar. Para Arendt a família é a instituição social capaz de fincar o indivíduo no mundo, ou seja, capaz de lhe conferir pertencimento e identidade, de fazê-los pensantes e políticos. Entretanto ao assumir esse papel, o Estado desempenha uma homogeneização que aniquila as singularidades. Por não ser homogeneizável Manzo escapa da destruição de suas singularidades e cria seu próprio pertencimento.
Em diálogo com Arendt podemos pensar em Sílvia Lara para dizer, Manzo é exilado ao mesmo tempo em que se exila de um Estado que enraíza pela homogeneização o que significa aniquilar as diferenças e seus próprios diferentes. A relação é ambígua, pois Manzo torna-se um lugar de resistência ao marcar seu lugar no mundo, independente do Estado, mas este ato de “rebeldia” só é necessário porque o próprio Estado o exclui. Nas palavras de Sílvia Lara, o Estado é o senhor, Manzo são os escravos, resistindo para além do binômio ação e reação. Deste modo, o culto aos ancestrais via religiões afro-brasileiras, no caso de Manzo, Umbanda e Candomblé Angola, desempenha um papel político e social ao situar os quilombolas como pertencentes a uma grande e mesma família, distinta e à parte da sociedade brasileira generalizada. Manzo se finca e reconhece como uma Família, mas ao fazê-lo estão não apenas resignificando um conceito, estão fundando um mundo.
NOTAS
¹ MARQUES, C. E. Bandeira Branca em Pau Forte: considerações sobre direitos e a "tomada da palavra política" em um Quilomblé Urbano de Belo Horizonte. 2015.
² Mametu é o título de Mãe de Santo, dentro do Candomblé Angola.
REFERÊCIAS
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