O vaso, o oleiro e o vazio: sobre sublimação e a ética do desejo em Lacan
- carolteixeirasil
- 15 de out.
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“O oleiro cria o vaso em torno do vazio com sua mão, o cria, assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo.” (Lacan, Seminário 7, p. 153, ed. Jorge Zahar)
Há uma presença constante na vida humana que raramente é nomeada, mas que move tudo o que fazemos: o vazio. Esse vazio não é um defeito, nem uma ausência de algo que “deveria estar lá”. Para a psicanálise, desde Freud e especialmente na leitura de Jacques Lacan, o vazio é constitutivo do sujeito — é o que nos faz desejar, criar, amar, pensar.
O que é o vazio na psicanálise?
Lacan nos ensina que o ser humano se forma a partir de uma falta estruturante. Essa falta não é simplesmente algo que “faltou na infância” ou uma carência emocional. Ela é uma condição humana que se estabelece na inserção da linguagem: para nos tornarmos sujeitos, entramos no campo simbólico, e com isso perdemos algo da experiência plena do gozo e da unidade mítica com o Outro primordial.
O vazio é, portanto, o traço dessa perda — o espaço deixado por aquilo que nunca tivemos, mas que, paradoxalmente, nos constitui. É o que Lacan chama de das Ding, a “Coisa”: algo impossível de simbolizar, um núcleo real em torno do qual o desejo se organiza.
O sujeito, desde então, se move tentando contornar essa ausência. É nesse contorno que nascem as obras humanas, as palavras, os vínculos e também os sintomas.
Sublimação: criar em torno do vazio
Freud já havia percebido que a energia das pulsões pode se desviar do caminho direto da satisfação para se transformar em criações culturais: arte, ciência, pensamento. A isso ele chamou sublimação.
Lacan retoma e radicaliza essa noção no Seminário 7 – A Ética da Psicanálise (1959–1960):
“Sublimar é elevar um objeto à dignidade da Coisa.”
Essa frase concentra um ponto essencial:o objeto da sublimação não substitui o que falta, mas dá forma à falta.
A sublimação não tenta preencher o vazio — ela o torna visível, o faz existir simbolicamente. É um gesto de criação em torno do impossível. Por isso, Lacan recorre à imagem do vaso e do oleiro:
“O oleiro cria o vaso em torno do vazio com sua mão, o cria, assim como o criador mítico, ex nihilo, a partir do furo.” (Seminário 7, p. 153, ed. Jorge Zahar)
O vaso é a metáfora perfeita do processo de sublimação: o que lhe dá sentido não é a argila, mas o espaço que ela contorna. O oleiro não trabalha para eliminar o nada — ele o circunscreve, o faz existir como forma.
Da mesma forma, quando sublimamos — ao criar, escrever, amar, elaborar uma perda — estamos moldando um contorno simbólico para o que não tem nome.
O vazio, o objeto a e o real
Com o avanço do ensino de Lacan, o vazio ganha nova formulação: ele se articula ao conceito de objeto a, o objeto causa do desejo. Esse “a” minúsculo designa o resto, o fragmento de gozo que sobra quando o sujeito é capturado pela linguagem. Não é o que desejamos, mas aquilo que faz o desejo se mover.
O problema é que, ao longo da vida, muitas vezes confundimos esse vazio com um “buraco que precisa ser tamponado”. Tentamos preenchê-lo com consumo, reconhecimento, amor idealizado, poder — qualquer coisa que prometa satisfação plena. Mas o resultado é o oposto: quanto mais tentamos tamponar o vazio, mais ele retorna, em forma de angústia, compulsão ou tédio.
A sublimação propõe outro caminho: reconhecer o vazio e fazer algo com ele. Ela não promete felicidade, mas dá ao sujeito uma posição mais ética diante do seu desejo — uma posição de criação, e não de fuga.
A ética do desejo
É nesse ponto que Lacan formula o que chama de ética da psicanálise. Ele afirma:
“A única coisa de que o sujeito pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo.”
Ceder do desejo, aqui, significa recuar diante da falta — querer “fechar” o vazio, em vez de habitá-lo. A ética do desejo não busca o bem no sentido moral, nem o prazer total; ela busca a verdade do desejo de cada sujeito. E essa verdade não é uma resposta pronta, mas um modo singular de sustentar o vazio.
Sublimar, portanto, é um ato ético: o sujeito encontra uma forma de dizer algo do seu desejo sem negar o que o funda — a falta, o impossível, o real.
O vaso como figura do sujeito
O vaso de Lacan é mais do que uma metáfora estética; ele é uma imagem da própria subjetividade. Cada um de nós é como o oleiro de si mesmo — molda, com as mãos da linguagem e do desejo, um contorno para o que não tem forma. O vazio é o coração da obra, o que dá sentido à matéria.
Viver eticamente, sob a perspectiva lacaniana, é aceitar que nunca haverá um objeto capaz de completar o ser. Mas é justamente essa falta que nos impulsiona: é ela que nos faz desejar, criar, pensar, amar.
O vaso só existe porque há vazio — e o sujeito também.
Conclusão: fazer algo com o que falta
Talvez o ponto mais belo da teoria lacaniana sobre a sublimação seja esse: ela nos convida a fazer algo com o vazio, em vez de lutar contra ele.
O sofrimento não está no fato de termos um vazio, mas em querermos preenchê-lo a qualquer custo. Quando aceitamos que o vazio é o centro da experiência humana, abrimos espaço para a criação — para o gesto que dá forma ao impossível.
A sublimação é esse gesto. E a ética do desejo é a coragem de continuar moldando, ainda que o centro da obra permaneça vazio.
💡 Tal como o oleiro diante da argila, o sujeito, diante da própria falta, não busca tapá-la — mas dar-lhe forma. O que nos torna humanos não é o que temos, mas o que fazemos com o que nos falta.
Referências
FREUD, Sigmund.
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Pulsões e seus destinos. In: Obras psicológicas completas, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques.
O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.