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Saúde Mental e Hipermedicamentalização


Aprendi ouvindo podcasts que, uma boa forma de começarmos a falar de um assunto, é trazendo as definições do que estamos falando, a conversa flui melhor quando as definições estão frescas na memória. Então vamos começar essa conversa definindo o que é Saúde Mental.


Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS - 2019), "Saúde Mental é um estado de bem-estar em que o indivíduo realiza suas capacidades, lidando com o estresse normal da vida, trabalhando de forma produtiva e contribuindo para sua comunidade". Já Freud traz uma definição mais simples e impactante, mas muito coerente e difícil para muitas pessoas nos dias de hoje, segundo Freud "O indivíduo saudável é aquele que pode amar e trabalhar." (Freud, 1917, p. 393). Apenas amar e trabalhar, duas palavras que não só englobam, mas são as esferas centrais da vida humana, necessárias para ser uma pessoa saudável.


A definição de saudável apresentada por Freud, me faz pensar o quão raro está se tornando encontrar pessoas capazes de trabalhar e amar, sem fazer uso diário de ansiolíticos, antidepressivos e afins. Não que haja uma condenação minha pelo uso de medicação quando necessário, a minha questão é se há necessidade do uso diário desses medicamentos para todas as pessoas que os utilizam hoje. Mas estou me adiantando, retomemos.


Tendo em mente as definições de Saúde Mental, vamos tratar do que é Hipermedicamentalização, um conceito novo e contemporâneo, que a meu ver, deveria ser mais discutido. E que podemos definir como, o uso excessivo, inadequado ou desnecessário de medicamentos, especialmente psicotrópicos, para tratar problemas de saúde mental, emocionais ou comportamentais. Este conceito surge quando o uso de medicamentos voltados para a saúde mental e controle emocional explode no mundo a fora. No Brasil não é diferente.

Segundo texto publicado no Jornal da USP, em 2023, "A comercialização de antidepressivos e estabilizadores de humor cresce a cada ano no Brasil. Conforme dados do Conselho Federal de Farmácia, a venda desses medicamentos cresceu cerca de 58% entre os anos de 2017 e 2021. A população brasileira recorre de forma progressiva aos fármacos em situações relacionadas à saúde mental".


O uso dos psicotrópicos aumentou, com isso a população brasileira se encontra mentalmente mais saudável? Não, infelizmente não. Assim como cresce de forma progressiva o uso de medicamentos, cresce de forma progressiva o número de diagnósticos psíquicos e de forma progressiva e ainda mais alarmante, cresce o número de suicídios no país.

De acordo com dados da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS), do Ministério da Saúde, houve um aumento de 43% nos casos de suicídio entre 2010 e 2019, passando de 9.454 para 13.523 casos. Em 2019, a taxa de suicídio no Brasil foi de 6,4 por 100 mil habitantes, com uma taxa maior entre os homens (10,7 por 100 mil) do que entre as mulheres (2,9 por 100 mil). Já em 2022, foram registrados 16.262 casos de suicídio, uma elevação de 11,8% em relação a 2021 .

Vale ressaltar que, os números são mais altos entre os adolescentes, com um aumento de 81% nos casos de suicídio entre 2010 e 2019, e também entre os idosos, com uma taxa de suicídio de 14,8 por 100 mil entre os homens e 2,6 por 100 mil entre mulheres idosas.


Podemos então reafirmar que enquanto a venda dos psicotrópicos aumentou no Brasil, a Saúde Mental parece ter diminuído, quando olhamos apenas para o aumento da taxa de suicídio. Sem entrar no aumento dos diagnósticos e no fato de a maior porcentagem de suicídios no país acometerem os adolescentes. Pois somente esse tópico rende um longo texto. Vamos nos ater a essa informação. A cada ano consumimos mais medicamentos para saúde mental e a cada ano nossa Saúde Mental parece piorar.

Isso acontece somente no Brasil? Não, infelizmente o suicídio foi a principal causa de morte do mundo em 2019.

Todavia há países em que o índice de suicídio vem diminuindo nos últimos anos. Isso acontece em alguns países europeus. Enquanto nas Américas, houve um aumento de 17% do mesmo índice ao longo do mesmo período, na Europa houve uma queda de 47%.


O que esses dados nos informam?


Os dados nos dizem que não há aleatoriedade no aumento e na queda da Saúde Mental mundial, onde houver maiores oportunidades e qualidade de vida as pessoas terão maior saúde mental. Temos de admitir que o contexto social brasileiro é absolutamente desfavorável à saúde mental e podemos intuir a partir da nossa experiência individual e confirmarmos com uma breve pesquisa em órgãos oficiais como a OMS que a desigualdade social, o desemprego, a vulnerabilidade, a violência e outros fatores sociais afetam diretamente a Saúde Mental de cada indivíduo.


Os dados também revelam que somente diagnosticar e medicar os sintomas do adoecimento mental, não é nem virá a ser a solução. Os psicotrópicos são desenvolvidos para serem usados em momentos de crise, períodos conturbados e extremamente difíceis da vida. Eles não foram feitos para serem usados diariamente pelo resto de nossas vidas. Com exceção de diagnósticos relacionados à psicose (como a esquizofrenia), que pode sim exigir um uso diário de medicação, pelo resto da vida.

Mas a maioria dos diagnósticos são de depressão e ansiedade, neste contexto a medicação deve ser utilizada com uma perspectiva de melhora e posterior desmame da medicação, que deve ser retirada de forma gradual e com o devido acompanhamento médico.


Mas não é isso que têm acontecido. Depois de algum tempo fazendo uso de um psicotrópico seu efeito tende a cair porque nosso corpo é inteligente e se adapta. Nesse momento muitas pessoas têm a dose aumentada ou mais uma medicação receitada, o que pode virar uma bola de neve, ou melhor, uma bola de remédios. E precisamos lembrar que os efeitos colaterais dos psicotrópicos são variados e intensos, então, uma pessoa que toma muitos desses medicamentos diariamente, dificilmente conseguirá mapear quais são seus sintomas e quais são apenas efeitos colaterais de alguma medicação.

O uso continuado dos psicotrópicos trazem ainda um fator desadaptativo. Voltando ao começo do texto quando vimos que Saúde Mental foi definida por Freud como a capacidade de trabalhar e amar, devemos nos perguntar se ao fazer uso desses medicamentos, eles estão de fato nos ajudando a sermos mais capazes de trabalhar e amar.

Pois o que eu vejo é o contrário, o uso contínuo com muitos aumentos de doses e novas medicações somadas às anteriores, tem anestesiado as pessoas ao ponto de se tornarem incapazes de lidar com qualquer crise no trabalho ou problema na vida amorosa. Ao primeiro sinal de problema parece mais fácil desistir, não é à toa que tem tanta gente desistindo da própria vida.


Mas para levantar o astral admitindo que viver é difícil mesmo. Cito um dos meus autores preferidos, "O que a vida quer da gente é coragem" (Guimarães Rosa).


Concluindo, termos avançado tecnologicamente ao ponto de termos medicamentos para ajudar no tratamento da nossa saúde mental, é algo realmente incrível. Mas precisamos com alguma urgência entender que a medicação é apenas uma ajuda e uma ajuda temporária. Ela trata os sintomas, mas nunca a causa e se você trata seus sintomas sem tratar a causa, pode ter certeza que um novo sintoma irá surgir. Então procure ajude profissional, faça um acompanhamento psicanalítico, onde as causas dos seus sintomas serão investigadas. Estou à disposição.



Referências bibliográficas


Organização Mundial da Saúde (OMS). (2019). Saúde Mental;


Freud, S. (1924). Introdução à Psicanálise. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1917);



Guimarães Rosa, J. (1956). Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio



 
 
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